CRÔNICA
No ritmo da música
... a sala de aula deve ser a extensão da casa,
onde
o ambiente de amor familiar prevaleça.
Faz algum tempo,
visitava com um amigo professor o Centro Cultural Vergueiro, em São Paulo, SP.
De passagem, observávamos um grupo de adolescentes a ensaiar coreografias de street dance, aqueles acrobáticos e
harmoniosos movimentos em vários estilos ao som de ritmos bem marcados. À
medida que a música fluía, vi que, sem dúvida, dedicavam-se com empenho à sua
arte.
Enquanto se
divertiam, de maneira saudável, ressalto, o velho mestre disse: “Olhando para
eles assim, buscando granjear empatia, quem não é professor nem sequer imagina
o estresse que alguns desses podem causar na sala de aula”. Respondi-lhe que,
por mais que as novidades cheguem, o ser humano permanece o mesmo. Certos
padrões comportamentais continuam a se repetir ao longo dos tempos.
Mudamos de assunto
e, depois de alguns minutos, despedimo-nos, ambos tomando o metrô em sentidos
opostos. Entretanto, a frase dita pelo professor me acompanhou em meus
pensamentos. Como algumas ideias levam a outras, lembrei-me de meu amigo Paulo
Roberto, casado com Maria da Graça, professora universitária e cientista de
muitas credenciais, que me contou fato ocorrido durante aula ministrada pela
esposa em uma universidade. Ressalto que a mestra é dessas que preparam a aula
e a transformam em ato de amor, ou melhor, em obra de arte.
“Situação mais
surreal, meu irmão”, ele afirmou exagerando um pouco a indignação, no limiar
teatral da ira. Acompanhara a esposa, que ia dar a aula inicial naquela noite.
Depois iriam namorar no cinema. Sentou-se na fileira da frente. Segundo seu relato,
não haviam decorrido cinco minutos, quando três rapazes se levantaram, sem nada
dizer, e cruzaram a soleira da porta. Passados uns dez minutos, duas moças fizeram
o mesmo. À medida que a aula prosseguia, outros trios e duplas saíram. Ao
final, restavam menos de um terço dos alunos. Era de esperar que prestassem
atenção à aula; porém, desatentos, na verdade entretinham-se conversando
amenidades. A lista de presença, que passou de mão em mão, retornou com todas
as assinaturas. “Isso é que é fenômeno paranormal – coisa mais
inexplicável...”, disse meu amigo.
O esposo da professora
não sabia, a seu ver, se o pior fora a evasão ou as conversas intermitentes
entre os que permaneceram na sala. Ele não conseguia entender por que “uma aula
excelente como aquela – sedutora em si, pois explica a própria vida – não
despertava interesse naqueles (in) discentes”: nem nos que saíram sem pedir
licença, sem dar um boa-noite; nem nos que ficaram conversando outros assuntos
entre si, sem acompanhar a aula. “Não tinham o menor interesse em fruir a
aula”, ele concluiu. Comentei que, pelo menos, fora um desrespeito pacífico,
sem desacato ao professor.
Ainda permitindo que
uma ideia me levasse a outra, lembrei-me do que me contou um livreiro lusitano.
Nos primórdios da Universidade de Coimbra, em Portugal, há mais de seis
séculos, existia uma espécie de quarto de detenção para alunos indisciplinados.
Se respondessem mal ao professor, ou manifestassem qualquer falta de respeito,
eram trancafiados ali por determinado tempo. Parece-me que, em nossos dias, com
a evolução dos costumes, essa forma de punição jamais retornará. Felizmente.
Penso que a sala de aula deve ser a extensão da casa, onde o ambiente de amor
familiar prevaleça.
Lembro-me de ter
comparecido à reunião pedagógica no colégio onde uma de minhas filhas estudava
e constatei que a escola ainda pode ter o controle da situação, se todos
estiverem de acordo. Conforme palavras do diretor, o estudante deve ser o maior
interessado nos resultados positivos que o modelo de ensino adotado visa proporcionar.
Por seu lado, sem ser repressiva, a escola faz questão absoluta da observância
de um mínimo de disciplina para que possa pôr o programa em prática.
Assim, desde que
verificada alteração na conduta do aluno, na primeira vez ele recebe advertência
verbal. Na segunda, esta se formaliza por escrito, informando os responsáveis
quanto ao ocorrido. Na terceira, sofre suspensão de um dia, do que os pais
deverão ficar cientes. Na quarta, o aluno retorna à casa levando com ele protocolos
para providenciar sua transferência.
Não sou adepto de
ações radicais no tocante à pedagogia – qualquer radicalismo é inaceitável –,
acredito que professor e alunos não devem abdicar do diálogo saudável, que
integra e constrói, como uma via de mão dupla que torna a viagem menos
estressante. A consequência é que todos têm a ganhar. Tudo se resume, em última
análise, na manutenção do amor ao saber e no respeito mútuo.
Esta não é uma
comparação, mas tanto no tocante à escola pública quanto à particular, em que
pese a distância no tempo, não há grandes diferenças entre os jovens da antiga
Coimbra e os de agora. São os velhos alunos de sempre. Aqueles, hoje, já não
poderiam ser detidos em um quartinho. Os alunos de hoje têm até a liberdade de
entrar e sair da sala de aula sem dar satisfações ao professor, além de abusar
das conversinhas inoportunas. São novos modos de vida.
Existe uma terceira
via, contudo, como desenvolver uma pedagogia poética, em que escola e alunos
busquem atingir resultados sem traumas e sem tédio, privilegiando a criatividade,
o que pode evitar reincidências nos padrões (in) disciplinares. Apesar das
bem-vindas novidades – muitas se constituindo em passos à frente –, algumas regras
ainda são necessárias: é preciso fluir com elas no ritmo da dança, até que tudo
seja só música. Afinal, é preciso que sempre se demonstre amor à arte.
Ah, Maria da Graça e
Paulo Roberto tinham ido assistir Sociedade
dos poetas Mortos.
*Por J. G. Pascale,
jornalista e escritor.